A Reforma Obama - universalização de quê?
Muito está se dizendo a respeito da reforma da saúde aprovada recentemente pelos Estados Unidos. O que ela propõe? O que tem de comum e de diferente do nosso sistema? Propostas de reforma de sucessivos governos pretendiam enfrentar dois problemas: o crescimento vertiginoso das despesas per capita e a crescente fração de pessoas sem nenhum acesso aos serviços de saúde. Há décadas as despesas com saúde crescem mais rapidamente do que a inflação, os salários e o PIB. Essa escalada (de 5% do PIB, em 1960, para 17%, em 2009) sobrecarrega os orçamentos públicos (Medicare, para idosos maiores de 65 anos, e o Medicare, para os pobres), aumenta as despesas médicas pagas do próprio bolso e encarece os planos de saúde. O resultado é o aumento do número de excluídos. Como ocorre no Brasil, a saúde nos Estados Unidos é custeada essencialmente pelo setor privado. Os governos participam com menos de 45% do total das despesas com saúde. Na verdade, o Medicare é financiado por contribuições de empregados e empregadores incidentes sobre os salários. Apenas o Medicare é por impostos. O Estado americano escolheu atender os idosos e os pobres. Quem não é elegível aos programas públicos nem tem plano de saúde, paga do bolso ou fica sem atendimento, o que se mostra coerente com a filosofia individualista dessa sociedade, em contraste com a visão de solidariedade que prevalece na comunidade européia. O Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro se inspira nos modelos europeus, mas sem os recursos necessários para desempenhar seu papel. Nos Estados Unidos, até agora o seguro-saúde é regulado pelos Estados, com escassa regulação federal. Era o contrato de seguro-saúde que estabelecia as condições de cobertura e suas cláusulas que permitiam negar cobertura para pessoas com doenças pré-existentes, excluir segurados de altos custos, variar sem limite os preços entre as faixas etárias, fixar limites financeiros para as despesas, exigir co-participação no pagamento dos procedimentos em valores que superavam a renda das pessoas, entre outros. Já no Brasil, a regulação, de 1998, veda todas essas limitações. O presidente Obama, durante sua campanha, prometeu enfrentar as questões do crescimento exorbitante das despesas e a exclusão de muitos americanos dos serviços de assistência à saúde. Senado e Câmara aprovaram projetos de reforma, mas sem contemplar todos os dispositivos prometidos. A empreitada era previsivelmente árdua, como atestado pelas inúmeras propostas rejeitadas, especialmente no que toca à contenção da escalada das despesas. É que despesas de alguns são receitas para outros e os que as perdem colocam insuperáveis obstáculos à efetivação da reforma. Assim, pouco de concreto havia nos projetos aprovados em relação à contenção dos gastos. A lei sancionada, na verdade, acrescenta custos ao sistema de saúde na proporção em que são sobretaxados os seguros de mensalidades altas, os serviços médicos ou os materiais e medicamentos. Resta ver se poderá cumprir seu outro objetivo, que é a universalização do acesso. O projeto sancionado é passo importante nessa direção porque aumenta a linha de corte da renda que torna os pobres elegíveis ao Medicare. A reforma é, na verdade, a universalização do seguro-saúde privado com subsídios do governo. Entenda-se bem: não se trata da universalização do direito individual à saúde e dever do Estado, como estabelece a Constituição brasileira. Ao contrário, a lei americana fixou como dever das pessoas terem, e das empresas de oferecerem, seguro-saúde e fixou multas pelo descumprimento. Ao indivíduo capaz cabe a responsabilidade financeira por seu seguro-saúde. A lei torna o seguro-saúde obrigatório e subsidia as mensalidades sempre que superarem certo porcentual da renda. Obriga as empresas a oferecerem planos para seus colaboradores, também com subsídios para as pequenas e multa pelo não cumprimento. Veda às seguradoras negarem cobertura em razão de doenças pré-existentes e de interromperem unilateralmente os contratos. Obriga os planos das empresas a manterem como segurados os seus aposentados. Cria uma bolsa/mercado para facilitar a aquisição do plano. Fixa limites à variação das mensalidades entre as faixas etárias. Monitora os reajustes de preços. A nova lei de saúde americana é um avanço. No entanto, o contraste com os sistemas de saúde europeus não poderia ser maior. Na Comunidade Europeia prevalecem sistemas em que é dever do Estado prover saúde, financiada por impostos. O Brasil entende saúde como dever do Estado e direito da pessoa, a ser financiada por contribuições sociais. Como o Estado não tem conseguido cumprir adequadamente com esse dever, as pessoas escolhem, mesmo sem abdicar do seu direito constitucional, contratar planos privados de saúde. A sociedade americana fez outra escolha? reservou para o Estado a proteção a miseráveis e a idosos ? e responsabiliza os indivíduos por sua própria cobertura. O avanço de agora obriga as pessoas a terem seguro-saúde, o que já é uma intervenção do Estado, e adiciona mais componente estatal, que é o subsídio. O Estado americano passa a ter maior ingerência regulatória no sistema de saúde, embora ele continue privado
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